quinta-feira, 16 de julho de 2009

Quando Eduardo Galeano visita meus estagiários.




Costumo conversar muito com meus estagiários, na Defensoria Pública.

Nosso trabalho desafia o senso comum e a recíproca é dolorosamente verdadeira. É preciso boa dose de otimismo para não se deixar vencer pela cultura policialesca, punitivista.

Ultrapassar os estreitos limites da dogmática e conviver com os princípios da nossa Constituição em vias de concretização é a tarefa de todos os dias.

Nas paredes do gabinete, vou pouco a pouco semeando alguns pensamentos célebres (trechos de Roberto Lyra, Ferrajoli, Zaffaroni etc), esperançoso de que quem trabalha comigo seja contagiado pela loucura e incomodado pelo desafio sempre proposto de fazer a defesa de quem aparentemente não merece ser amado.

A poesia tem sido de algum modo aliada, quando o que pretendo dizer não encontra eco na letra fria da lei e dos códigos.

Vez ou outra, quando os animos se acirram diante de um caso concreto, e os estudantes me questionam sobre a Justiça e os fundamentos do direito intransigente à defesa, me valho da lição do poeta uruguaio, convidando-os a olhar o mundo segundo o prisma crítico e humanitário do escritor.

Em "Os ninguéns" de Eduardo Galeano, o perfil de quem bate às portas da Defensoria Pública:

"As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos;
Que não são, embora sejam;
Que não falam idomas, falam dialetos;
Que não praticam religiões, praticam superstições;
Que não fazem arte, fazem artesanato;
Que não são seres humanos, são recursos humanos;
Que não têm cultura, têm folclore;
Que não têm cara, têm braços;
Que não têm nome, têm número;
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata."

2 comentários:

  1. Eloísa Maximiano Goto20 de julho de 2009 às 16:00

    Adorei Lucas.
    Muito bom amigo
    um abraço

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  2. Gostei.
    Muitas vezes me pergunto se você não é Alguém amante da história, da filosofia, do humanismo, que caiu dentro do Direito.
    Não ocorrendo que o Direito seja uma área de todo fria, mas sim, que você o humaniza na forma como lida com as tais "letras frias".

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