sábado, 15 de agosto de 2009

Breves reflexões sobre a Lei 12.015/2009



A lei 12.015 de 7 de agosto de 2009 alterou o título VI da Parte Especial do Código Penal, que tratava dos crimes contra os costumes. Sua vigência teve início em 10.8.2009, data da publicação no Diário Oficial da União. De plano, constata-se que foi admitida a crítica da doutrina quanto ao bem jurídico que o antigo legislador resguardava. A partir de agora, como de fato era antes mesmo da nova lei, o bem jurídico tutelado é a dignidade sexual e não os costumes.


Antes porém de adentrar em aspectos pontuais da reforma, vale observar que a Lei 12.015/2009 revogou a Lei 2.252/54, que tratava da corrupção de menores e inseriu no Estatuto da Criança e do Adolescente o artigo 244-B com o mesmo teor proibitivo. A pena de 1 a 4 anos não foi alterada, mas a multa deixou de existir na nova redação.


Além disso, os parágrafos 1.º e 2.º do novo artigo do ECA atendem os reclamos da sociedade informatizada.


Com efeito, segundo o § 1.º, incorrerá nas penas do caput do artigo 244-B do ECA quem utilizando-se de quaisquer meios eletrônicos, inclusive salas de bate-papo da internet corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 anos, com ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticá-la.


Lado outro, se a infração cometida ou induzida for hedionda (cf. artigo 1.º da Lei 8072/90), as penas do caput serão aumentadas de um terço (1/3), conforme o §2.º do artigo 244 do ECA.


Vale lembrar a título de comentário ao dispositivo legal, que o crime de corrupção de menores do artigo 244-B do ECA, a exemplo do previsto na lei revogada, continuará a admitir prova em contrário, no sentido de que o menor já era corrompido ao tempo da conduta.

A reforma revogou ainda expressamente (art. 7.º) os artigos 214, 216, 223, 224 e 232 do Código Penal. De fato, o tradicional artigo 214 foi revogado, razão pela qual o atentado violento ao pudor deixou de ser tipo autônomo.


A opção legislativa não passa imune às regras da Parte Geral do Código Penal.


A nova redação do artigo 213, cujo nomen juris é apenas "estupro" (constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso") tornou-o crime de ação múltipla (de conteúdo variado ou plurinuclear). Não se trata de mero deslocamento na classificação doutrinária dos crimes. Os efeitos são de ordem prática.


A nosso sentir, uma das mais profundas modificações da nova disciplina dos crimes contra a dignidade sexual repousa na constatação de que deixa de existir a possibilidade de concurso material (art.69 do CP) entre o estupro e o atentado violento ao pudor. Abrem-se as portas para o reconhecimento do crime continuado (continuidade delitiva, artigo 71 do CP), vez que as condutas antes constates cada qual em um artigo, agora estão inseridas dentro do mesmo tipo penal e são, portanto, crimes da mesma espécie e em muitas outras situações configurarão mesmo crime único.

A postura anterior do legislador, incluindo cada conduta (estupro e atentado violento ao pudor) num tipo penal autônomo, fazia com que a jurisprudência afastasse o cabimento do crime continuado. Nesse sentido, os seguintes arestos do Supremo Tribunal Federal:

EMENTA: HABEAS CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CRIME CONTINUADO. IMPOSSIBILIDADE. ORDEM DENEGADA. A análise do crime continuado envolve o reexame de fatos e provas, o que, em princípio, é inviável na estreita via do habeas corpus. Precedentes (HC 91.895, rel. min. Menezes Direito, DJe-147 de 08.08.2008; e HC 92.758, rel. min. Eros Grau, DJ de 03.12.2007). Ademais, segundo julgados do Supremo Tribunal Federal (HC 94.714, rel. min. Carmem Lúcia, julgado em 28.10.2008; e HC 89.770, rel. min. Eros Grau, DJ de 06.11.2006, p. 51), não há espaço, no caso, para o afastamento do concurso material e o reconhecimento da continuidade delitiva entre os crimes de estupro e atentado violento ao pudor. Ordem denegada. (HC 94504, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 23/06/2009, DJe-148 DIVULG 06-08-2009 PUBLIC 07-08-2009 EMENT VOL-02368-03 PP-00519).

EMENTA: HABEAS CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CONCURSO MATERIAL E NATUREZA HEDIONDA. ORDEM DENEGADA. Na linha da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não há espaço, no caso, para o afastamento do concurso material e o reconhecimento da continuidade delitiva entre os crimes de estupro e atentado violento ao pudor. Precedentes: HC 94.714, rel. min. Carmem Lúcia, julgado em 28.10.2008; e HC 89.770, rel. min. Eros Grau, DJ de 6.11.2006, p. 51. Tais crimes, ademais, ainda de acordo com precedentes desta Corte (HC 90.706, rel. min. Carmen Lúcia, DJ de 23.3.2007; e HC 89.554, rel. min. Celso de Mello, DJ de 2.3.2007), devem ser considerados hediondos, mesmo que não qualificados e praticados sem violência real. Ordem denegada. (HC 95705, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 31/03/2009, DJe-075 DIVULG 23-04-2009 PUBLIC 24-04-2009 EMENT VOL-02357-03 PP-00522)


Quanto ao crime continuado, obviamente que estamos falando de hipóteses em que o agente pratica duas ou mais condutas gerando dois ou mais crimes (conforme os demais requisitos do artigo 71 do CP), pois se a conduta for única estaremos diante de crime único (e não de concurso formal).


Parece-nos ainda, nessas primeiras reflexões, que apesar do recrudescimento das penas, a alteração da estrutura do crime, tornando-o plurinuclear, com as consequências já vistas, acarretou verdadeira novatio legis in mellius, permitindo-se, em alguns casos, revisões criminais e unificação de penas pelo juízo das Execuções Criminais.


Sustento a competência do juiz das execuções por três principais motivos:


1. A previsão do artigo 66, I da LEP: "Compete ao juiz da execução: I - aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado;"


2. O inciso III do mesmo artigo 66, que diz competir ao juiz da execução "decidir sobre [...] soma ou unificação de penas".

Como cediço, a unificação refere-se basicamente a três possibilidades: concurso formal, crime continuado e superação do limite de 30 anos. Logo, caberá sim, smj, reconhecimento de continuidade e crime único pelo juízo da Vara de Execuções Criminais.


3. A Súmula 611 do STF: "Transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna".

Por último, bom lembrar que a unificação pelo juiz da execução pressupõe o trânsito em julgado da decisão condenatória a e expedição efetiva da guia de recolhimento.


Outra observação se dá quanto à criação dos parágrafos 1.º e 2.º na estrutura do artigo 213. Existindo alteração do preceito secundário da norma em face de algumas circunstâncias, dá-se a constatação de que a partir de agora existe estupro qualificado.


A pena será de reclusão de 8 a 12 anos se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 anos ou maior de 14 anos. Se, todavia, da conduta resulta morte, a reclusão passa a ser de 12 a 30 anos.


Nas hipóteses qualificadas, tratando-se de desdobramentos da estrutura descritiva básica do caput, imprescindível será a constatação de violência ou grave ameaça.


Noutro giro, constata-se que a presunção de violência deixa de existir. Com a revogação expressa do artigo 224 do CP, não existe mais a necessidade de conjunção entre os artigos 213 e 224, para concluir se existe ou não violência presumida que permita a incriminação do agente por estupro. A questão parece lógica. O artigo 217-A prescinde da violência e, portanto, não há que se falar em violência presumida para permitir a subsunção do fato à norma.


A partir de agora, o menor de 14 anos (o artigo 224 aludia ao "não maior de 14") e o enfermo ou deficiente mental, que não tenham o necessário discernimento para a prática do ato sexual, ou que, por qualquer outra causa, não puderem oferecer resistência, passam a ser vítimas de crime autônomo, intitulado "Estupro de vulnerável" (artigo 217-A do CP). Destina-se ao agente deste delito a pena de reclusão de 8 a 15 anos.


A crítica que se pode destinar ao tipo penal em comento é no sentido de que contribuiu na densificação dos crimes de perigo abstrato no sistema penal brasileiro. Resta evidente o afastamento do legislador da tendência doutrinária que repele a recepção de alguns tipos penais pela ordem constitucional de 1988, bem como inquina de inconstitucionalidade crimes desvinculados do devido respeito ao princípio da lesividade ou da ofensividade do fato.


Críticas à parte, também no estupro de vulnerável há agora forma qualificadas, porque o preceito secundário da norma se altera. Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave, a pena será de reclusão de 10 a 20 anos, e se resultar morte a reclusão será de 12 a 30 anos.


O artigo 218, antes corrupção de menores (que tinha conotação de corrupção sexual e se distinguia da hipótese revogada de corrupção de menores da Lei 2252/52) desdobra-se em três novos crimes: Induzimento de menor de 14 anos a satisfazer a lascívia de outrem (art. 218), Satisfação da lascívia mediante presença de criança ou adolescente (art.218-A) e Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável (218-B).


A reforma prevê ainda causas de aumento de pena inseridas no novo artigo 234-A do Código Penal. Assim, a pena aumentará de metade (1/2) se do crime resulta gravidez e de um sexto (1/6) até a metade (1/2) se o agente transmite à vítima doença sexualmente transmissível de que sabe ou deveria saber ser portador


Na última causa de aumento, a utilização da expressão "deveria saber" indica dolo eventual e portanto, será afastado o aumento de pena se a hipótese concreta for de conduta culposa.


Encerrando estas primeiras linhas sobre a reforma, observamos ainda que segundo o novo artigo 234-B do CP os processos que apuram crimes contra a dignidade sexual passarão a tramitar em segredo de justiça.


Um último tópico merece destaque e se refere à ação penal. Alterou-se também a redação do artigo 225. O risco de ocorrência de strepitus judicii ou escândalo causado pela divulgação do fato não mais permite que a ação penal seja privada. Os crimes previstos nos capítulos I e II do Título VI do CP, ou seja, Estupro (213), Violação sexual mediante fraude (215), Assédio Sexual (216-A) e induzimento de menor de 14 anos à satisfação da lascívia de outrem (218), serão de ação penal pública condicionada a representação. Eis a regra que geral que só comportará uma exceção: se a vítima for menor de 18 anos ou pessoa vulnerável, a ação penal será pública incondicionada.

A lei 12.015/2009, como visto, trouxe inúmeras alterações no plano dos delitos contra a dignidade sexual, a começar pela alteração do bem jurídico tutelado, sob um prisma mais alinhado à dignidade da pessoa humana. Muitas dessas alterações foram capazes de modificar as estruturas dogmáticas da antiga disciplina do Código Penal, fato que certamente implicará esforços da doutrina na compreensão do novo sistema, bem como forçará a jurisprudência a revisitar posições já assentadas.

Não nos parece ser o momento de dizer ainda, em face da novidade do texto, se a nova lei tem cunho midiático ou refreador da opinião pública. Conquanto tenha havido aumento de pena em algumas hipóteses, em muitas outras situações, conscientemente ou não, o legislador permitiu interpretações favoráveis a réus e condenados, como acreditamos ter demonstrado.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Noções elementares dos embargos de divergência em matéria penal.

Os embargos de divergência são oponíveis contra decisão proferida por Turma do STJ ou do STF, no julgamento de recurso especial ou extraordinário, contrária a decisão de outra Turma, Seção ou Órgão Especial do mesmo Tribunal. Decisões de outros tribunais não caracterizam divergência.
A previsão legal do recurso em testilha repousa no artigo 29 da Lei n.º 8.038/90, que disciplina os recursos nos Tribunais. Embora referido artigo trate do cabimento contra decisões do STJ, também é cabível no STF, por força do artigo 546 do CPC e de norma do Regimento Interno do Supremo.
O STJ funciona em três Seções especializadas, cada qual composta por duas Turmas. Assim, a Primeira Seção é formada pela 1.ª e 2.ª Turma, a Segunda Seção pela 3.ª e 4.ª Turma e a Terceira Seção pela 5.ª e 6.ª Turma. A matéria criminal no Âmbito do STJ é da alçada da Terceira Seção, e portanto, também julgada pela 5.ª e 6.ª Turma.
Os embargos de divergência serão julgados:
  1. Pela Seção, quando houver dissídio entre Turmas da mesma Seção (v.g. divergência entre a 5.ª e a 6.ª Turma do STJ será julgada pela 3.ª Seção);
  2. Pelo órgão Especial, quando houver divergência entre turmas de Seções diferentes; entre Turma e outra Seção, ou entre a turma e o próprio Órgão Especial.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

"Soldado Zero Um, traga os Direitos Humanos pra ele..."


Vi a foto em destaque pela primeira vez dentre inúmeras outras do fotojornalismo premiado de 2008. Para quem não consegue ler, o porrete traz a inscrição "Direitos Humanos".
Em busca na internet, encontrei-a na página "O Globo". Continua lá no sítio, para quem quiser conferir, a informação de que o taco com a inscrição "Direitos Humanos" pertencia a um bandido.
Tenho o direito de não acreditar na versão dada à origem da inscrição. Mormente porque já estou farto das histórias de porretes, e dos matagais, e dos entorpecentes que se plantam em flagrantes e das invasões de domicílio sem mandado, e das práticas de tortura ensinadas pela película sangrenta de "Tropa de Elite". Defensor Público escuta todo dia tais relatos, e passa a acreditar neles, em especial quando vê as marcas psicológicas e físicas que deixam no lombo da marginália.
Ao Defensor Público é dada diariamente a prova que Tomé exigia da violência sofrida. Por outras palavras, para ser explícito como a foto: acredito porque vejo e, porque vejo, denuncio. Não obstante, de fato, o sistema de justiça está repleto de incrédulos.
Enfim, sei que a arma em destaque na fotografia é arma do Estado.
A imagem, como todas as outras, tem profundo valor simbólico. É o retrato da concepção comum dos Direitos Humanos. Afinal, boa parte dos "humanos direitos" pretende ver o controle social institucionalizado praticando somente essa política de implementação dos direitos humanos: a do porrete.
A foto é premiada porque denuncia sem palavras uma realidade massacrante. A realidade da segregação social a que se dá resposta somente com violência. A arte fotográfica tem valor porque eterniza a indignação e porque nos devolve a perplexidade, roubada de tantas maneiras.
Sobre os ombros do gigantesco policial sem rosto, pesa a política estatal de Direitos Humanos. A mesma política, tão velha e sempre a mesma, que levou morte ao Carandiru e que fomentou o nascimento de facções criminosas no Estado, a mesma que não se dando conta das diferenças, das necessidades de uma sociedade desigual, aposta na violência como instrumento de Justiça e Paz.
Não é essa a polícia que o Estado de Direito reclama e sem dúvida não é o porrete que o pobre espera.
Bem por isso, encerro lembrando Norberto Bobbio. Em "A Era dos Direitos", está a conclusão de que mais do que declarar Direitos Humanos, o desafio posto à nossa geração é colocá-los em prática.
Que não seja pelo porrete!

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Quando Eduardo Galeano visita meus estagiários.




Costumo conversar muito com meus estagiários, na Defensoria Pública.

Nosso trabalho desafia o senso comum e a recíproca é dolorosamente verdadeira. É preciso boa dose de otimismo para não se deixar vencer pela cultura policialesca, punitivista.

Ultrapassar os estreitos limites da dogmática e conviver com os princípios da nossa Constituição em vias de concretização é a tarefa de todos os dias.

Nas paredes do gabinete, vou pouco a pouco semeando alguns pensamentos célebres (trechos de Roberto Lyra, Ferrajoli, Zaffaroni etc), esperançoso de que quem trabalha comigo seja contagiado pela loucura e incomodado pelo desafio sempre proposto de fazer a defesa de quem aparentemente não merece ser amado.

A poesia tem sido de algum modo aliada, quando o que pretendo dizer não encontra eco na letra fria da lei e dos códigos.

Vez ou outra, quando os animos se acirram diante de um caso concreto, e os estudantes me questionam sobre a Justiça e os fundamentos do direito intransigente à defesa, me valho da lição do poeta uruguaio, convidando-os a olhar o mundo segundo o prisma crítico e humanitário do escritor.

Em "Os ninguéns" de Eduardo Galeano, o perfil de quem bate às portas da Defensoria Pública:

"As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos;
Que não são, embora sejam;
Que não falam idomas, falam dialetos;
Que não praticam religiões, praticam superstições;
Que não fazem arte, fazem artesanato;
Que não são seres humanos, são recursos humanos;
Que não têm cultura, têm folclore;
Que não têm cara, têm braços;
Que não têm nome, têm número;
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata."

sexta-feira, 10 de julho de 2009

A Revolução Constitucionalista de 1932

Ontem foi 9 de julho, comemeoração estadual da Revolução Constitucionalista de 1932. A imprensa noticiou o fato histórico em notas curtas. Resolvi refletir um pouco a respeito, revisitando notas antigas, livros e sites da internet. Trata-se de fato curioso, durou cerca de 90 dias e ocasionou a morte de inúmeras pessoas. Uns dizem que foi movimento elitista, mas a história faz questão de vinculá-la a ampla participação popular. Fiquei me questionando se a população do incipiente estado industrial, essencialmente agrária, mas em transição para o modo de vida proletário, tinha educação e conhecimento suficiente para se engajar conscientemente em prol de um movimento constitucionalista.

A idéia de Constituição traz o germe da contenção de poderes, com a estruturação política (espacial e de poder) do Estado. Hoje em dia, poucos cidadãos sabem o que é realmente uma Constituição. O senso comum não sabe distinguir os conceitos de uma portaria, de um decreto e da Cosntituição Federal. Por que o povo naquela época saberia? Bem ou mal, foram cooptados pelos interesses políticos da elite bandeirante.

Mas tal constatação não retira da data seu valor democrático. Consciente ou não, o povo paulista, derrotado nas armas, contribuiu para colmatar a idéia de necessidade de uma Constituição como norma estruturante do Estado Brasileiro. A vitória foi, portanto, ideológica.

A revolução de 1930 basicamente impediu a posse de Julio Prestes (governador de São Paulo) na Presidência da República, que ascenderia ao Poder rompendo a politica do café-com-leite da República Velha. A preterição do candidato de Minas Gerais, ocasionou a aliança de Minas com Rio Grande do Sul e Paraíba no Congresso Nacional, com formação da Aliança Liberal e a indicação de Getúlio Vargas, Ministro da Fazenda da Presidência de Washington Luis, como candidato à Presidência da República.

A derrota de Getúlio nas urnas foi acachapante, e as denúncias de fraude eleitoral ocorreram para ambos os lados, embora se tenha notícia de que Julio Prestes, do Partido Republicano Paulista e vencedor do pleito presidencial, contava com o apoio de 17 estados e com o voto de mais de 90% do eleitorado paulista. Eleito em 1.º de maio de 1930, não tomou posse.

A Aliança Liberal em 3/10/1930 tomou os três Estados de origem (MG, RS e PB) e rumou com tropas para a Capital Federal. Em 24/10/1930 ocorre o triunfo da Revolução de 1930, o golpe militar comandado por comandantes militares no Rio de Janeiro depõe Washington Luis e entrega em 3/11/1930 o Poder a Getúlio Vargas, instalando-se no Brasil um Governo Provisório, sem constituição, nos moldes de uma verdadeira ditadura.

São Paulo perde autonomia, fato que não melhora sequer com a nomeação por Getúlio Vargas de interventor paulista no Estado.

Em 25/01/1932 um meeting (comício) na Praça da Sé reúne cerca de 200.000 pessoas em torno de ideais constitucionalistas. Em fevereiro do mesmo ano, os Partidos Republicano e Democrático de São Paulo se unem para exigir o fim da ditadura e do governo provisório.

o Governo de Getúlio, amparado por inúmeros políticos interventores que não eram paulistas, gerava em São Paulo a sensação de que revolta se dera contra o Estado, criando no povo a sensação de "conquistados". A morte dos estudantes (MMDC) recrudesce o movimento.

O povo pega em armas e a revolução ocorre, embora na verdade São Paulo, que acreditava contar com o apoio de outros estados, se veja praticamente sitiado pelas tropas de Vargas.

O isolamento de São Paulo no conflito gerou situações inusitadas como o uso da matraca (instrumento utilizado para reproduzir os estampidos de uma metralhadora e assim assustar os inimigos) e a criação praticamente artesanal de armas e veículos de guerra (a exemplo do carro blindado criado pela USP).

A revolução de 1932 está retratada em muitas cidades do interior de São Paulo (vide foto, Ribeirão Preto - SP) e na capital, a exemplo do obelisco no Parque do Ibirapuera.

O fato, a exemplo de tantos outros, desmente o lugar comum de que o Brasil não teve conflitos. Trata-se de um dos capítulos de nossa história constitucional que precisa ser cultivada, a fim de propiciar o adensamento de práticas democráticas atreladas ao ideal de formação de um Estado Democrático e Humanitário de Direito.

Dia 10 de julho de 2009. Bem vindos ao compartilhamento de minhas inquietações...